O Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul vive um momento de reflexão profunda sobre o papel que desempenha na sociedade e sobre os rumos de sua missão diante do novo marco legal da Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, Lei 14.751 de 2023. Mais do que um debate administrativo, trata-se de reafirmar uma identidade institucional.
A Lei 14.751, em seu artigo 15, exige graduação em Direito para o ingresso na carreira de oficial destinada ao Estado Maior. No caso dos Corpos de Bombeiros, permite-se o ingresso com formação em Direito ou em outro curso superior que atenda às necessidades da corporação. Essa exigência não transforma a carreira em jurídica militar. O objetivo é reconhecer o valor do conhecimento jurídico como ferramenta de gestão, comando e assessoramento, preservando a natureza técnico operacional e científica das corporações. A formação em Direito é um requisito de ingresso e não um traço de identidade funcional.
O Supremo Tribunal Federal reforçou esse entendimento ao afirmar que a exigência de bacharelado em Direito não confere caráter jurídico à carreira e não autoriza equiparação com carreiras típicas de Estado de natureza jurídica, como a Magistratura e o Ministério Público. Em decisão recente, o STF concluiu que delegados de polícia não integram carreiras jurídicas, o que afasta pretensões de equiparação automática por semelhança de formação ou por proximidade funcional.
No Corpo de Bombeiros Militar a própria LON deixa claro que a missão é técnica, científica e humanitária. A atuação se apoia na aplicação prática da ciência e da tecnologia em defesa da vida e da segurança pública e não em atividades de natureza jurídica. Por isso o CBMRS precisa preservar uma identidade própria, sem aderir a modelos jurídicos ou administrativos que não combinam com sua vocação constitucional.
Nos últimos anos surgiram narrativas que tentam aproximar o CBMRS de carreiras jurídicas, muitas vezes mirando equiparações com delegados de polícia sob o argumento de que haveria natureza jurídica das atribuições. Essa interpretação ignora o elemento essencial da missão dos bombeiros, que é técnico, científico e operacional.
A sociedade, por vezes influenciada por estereótipos e por falta de informação, desconhece essa natureza. Há quem aspire à identidade jurídica e quem busque equiparações remuneratórias com carreiras distintas. O que mais causa consternação é a falta de compreensão sobre a nossa condição de militares estaduais, com todas as responsabilidades, limites e especificidades daí decorrentes.
A Lei 14.751, no artigo 18, inciso XIV, prevê que a remuneração dos militares das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares deve obedecer ao escalonamento vertical entre postos e graduações estabelecido na lei do ente federado, respeitando o artigo 37, inciso XI, da Constituição Federal. O caminho da valorização é o cumprimento da lei.
Não se trata de declarações simbólicas nem de equiparações pontuais, mas da implementação efetiva de regras que estruturam a progressão remuneratória conforme hierarquia, responsabilidade e desempenho. Quando o escalonamento vertical é cumprido, cada posto e cada graduação são reconhecidos em seu devido valor, com proporcionalidade e estabilidade ao longo da carreira.
A identidade do bombeiro nasce da técnica, da ciência e do aço. Um colega experiente costuma dizer que, se existisse um curso superior em Ciências do Fogo e Emergências, ele naturalmente se situaria na área tecnológica, ao lado das engenharias e das ciências exatas. O sentido da palavra bombeiro confirma essa visão. É quem opera bombas, máquinas, sistemas hidráulicos e viaturas. É quem domina tecnologia aplicada à preservação da vida e do patrimônio. O cotidiano do quartel traduz essa essência. Começa com a passagem de serviço. Passa pela checagem de equipamentos, pela revisão dos sistemas, pelo ajuste de mecanismos, pela manutenção das ferramentas e pela conferência da viatura. Termina com a operação em ambiente de risco. O quartel é um laboratório vivo de ciência aplicada à emergência.
Quem já respirou fumaça sabe que equipamentos podem falhar e o corpo pode cansar, mas o espírito de servir não cede. A ciência do fogo se aprende no campo, sob calor intenso e pressão real. Novos organogramas e estruturas podem surgir, mas nada altera a verdade que nos define. O bombeiro é, e continuará sendo, o combatente das chamas. É no fogo que se prova o valor, não pelo diploma nem pela retórica, mas pela ação. O calor revela o caráter e o risco separa títulos de virtudes.
Quando o CBMRS tenta se espelhar em outras carreiras, a instituição perde a própria alma. O Corpo de Bombeiros não é polícia judicial nem braço auxiliar de nenhum poder. É uma força autônoma, técnica e humanitária, construída na coragem e na responsabilidade de chegar primeiro quando todos recuam. A valorização real não virá de equiparações artificiais com carreiras jurídicas. Virá da afirmação leal da nossa essência. É hora de abandonar modelos alheios e recuperar o próprio reflexo. O CBMRS precisa se enxergar como ciência, engenharia e honra.
Em 2018 a ABERGS promoveu o Seminário Bombeiros que Queremos, que reuniu oficiais, praças e especialistas, inclusive de outros estados, para discutir identidade, carreira e os rumos do CBMRS após a emancipação. O encontro consolidou diagnósticos sobre efetivo e formação, apontou diretrizes de valorização e resultou em propostas de aprimoramento de carreira e gestão, reforçando o compromisso da ABERGS com um diálogo permanente, técnico e responsável.
O Corpo de Bombeiros que queremos reconhece e reafirma a própria identidade como força técnica, científica e operacional. Negocia carreiras, remunerações e estruturas com base nessa natureza e não por aproximações com instituições de fundamento jurídico distinto. Exige que a Defesa Civil seja organizada de forma coerente com essa missão e não subordinada a lógicas policiais que têm outra finalidade.
A decisão do Supremo mostra que o valor de uma instituição não depende de rótulos jurídicos. O que sustenta o prestígio é a natureza da missão, a competência técnica e a capacidade de resposta. O Corpo de Bombeiros que desejamos não pede licença para existir. Enfrenta o fogo de frente e afirma que é ali que pertence. Reconhece a própria grandeza e cobra respeito por mérito. Defende a autonomia com a serenidade de quem já fez o impossível.
O CBMRS não será lembrado por equiparações salariais pontuais, mas por ter reconquistado sua essência com a aplicação da lei federal. Ciência, técnica, coragem e vocação, sustentadas pelo sacrifício que nos define, são os pilares da nossa história e da nossa dignidade. Essa é a força que move a valorização. Tudo se ergue sobre o juramento que nos guia: "... mesmo com o risco da própria vida.”
Foto: Rodrigo Ziebel
ABERGS
Unidos em um só corpo, Corpo de Bombeiros!

