Um ano do rompimento da barragem que se rompeu em Brumadinho, o G1 traz histórias de profissionais do Corpo de Bombeiros de Juiz de Fora e região que tiveram suas vidas atravessadas pela tragédia que vitimou fatalmente 270 pessoas.
E, que deixou marcas indeléveis em outras centenas de famílias e profissionais envolvidos nos trabalhos que ainda estão em andamento.
Capitão Acácio Tristão Gouveia, chefe atual da seção de Planejamento do 4º Batalhão de Bombeiros Militar (4ºBBM) em Juiz de Fora se lembra exatamente do que fez no momento em que recebeu a informação.
"Liguei imediatamente para o meu comandante, informando que tinha uma equipe pronta para atuar. Saímos daqui no final da tarde daquele 25 de janeiro com a certeza que tínhamos muito a fazer. Vieram memórias de uma outra operação de salvamento que havia participado três anos antes, em Mariana. Mas depois que chegamos em Brumadinho, eu já não podia mais mensurar o que viria pela frente", explicou.
Segundo ele, até então a ocorrência em Mariana era a mais importante da vida dele. "Hoje eu já não não vivo com estas certezas que a gente tem. Ainda que seja delicado dizer isso e, que nunca desejamos viver algo ainda pior, aquele cenário de desolação me mostrou que é preciso estar sempre preparado para tudo, sempre nos capacitando para garantir apoio e suporte para o que pode vir a seguir. Essa é uma das lições que eu tiro dessa ocorrência", afirmou.
Qual será o último instante?
Para o o subtentente Denilton Dias Ferreira, lotado no Pelotão de Emergências Ambientais e Respostas a Desastres ( Pemad) do 4º BBM, em Juiz de Fora, não tem como não sair, no mínimo mudado, com uma outra forma de ver a vida, motivado a viver.
"Nessa nossa missão de ser do Corpo de Bombeiros, a todo o tempo estamos às voltas com a morte. A cada ocorrência, ela nos lembra que está por perto o tempo todo. Por isso, valorizo o que é mais importante, que são meus filhos, minha esposa, meus pais, meus irmãos, meus amigos. Curto e aproveito com eles todos os momentos, porque não sei qual será o último instante em que estaremos juntos," afirmou.
Entre as memórias mais marcantes, o subtentente contou que se viu entre dois momentos fortes diante do anúncio do rompimento da barragem. A terceira filha, chamada Maria, estava há poucos dias de nascer. A esposa e os filhos precisavam dele por perto. Mas a profissão mostrava que ele precisava estar lá, naquele resgate.
"Eu fazia parte da resposta que aquelas centenas de famílias precisavam ter. E quando chegamos lá senti que estava certo. Me lembro de ficar dias perto daquela caminhonete que foi engolida pela lama e cujo vídeo repercutiu muito em todos os lugares. Melhor de tudo foi encontrar o dono dela dias depois, salvo, materializado sob a forma de um milagre. Outra história que não me esqueço é de uma tia contando que o sobrinho estava nadando num açude no momento do rompimento. E pouco tempo depois, o garoto apareceu no topo de uma mata, enlameado, mas fora de perigo. Ela não sabia explicar como ele escapou ileso", relembrou.
"Todo mundo tem uma expectativa. Naquela tarde, estavam todos almoçando, se divertindo - como é comum na hora do intervalo em um ambiente de trabalho. Esperavam o fim do expediente para ver os filhos, ver a esposa, os pais, fechar aquele plano para fazer uma viagem. Outros pensavam ou comemoravam uma oportunidade de ascensão na carreira profissional. E, num piscar de olhos: acabou tudo, de uma forma muito bruta, " relembra Denilton.
"A história das vidas que se perderam ficaram espalhadas pelos meus pensamentos e me motivam a ser um pai melhor, um marido melhor, um ser humano melhor. O legado de Brumadinho é que preciso viver um dia de cada vez e aproveitar a minha vida diariamente, tentando ser feliz com aquilo que o meu dia me proporciona," finalizou.
Sentimento de gratidão
Moradora de Barbacena, mas integrante da unidade do Corpo de Bombeiros de Ubá , a soldado Ana Luisa Mrad Marteleto contou que conhecer e conviver com pessoas que perderam seus entes queridos e, mesmo em seu luto, trabalhavam sem medir esforços com os militares, é uma das memórias que traz desta grande experiência em Brumadinho.
Por mais que tenha participado da missão em seu início, já que ela permanece até hoje, ela conta que não perde o contato com os colegas de salvamento, porque toda semana tem algum companheiro que trabalha diretamente sendo empenhado em Brumadinho. "E a gente fica nessa expectativa de conseguir encontrar todas as vítimas. Toda vez que é noticiado identificação de mais uma vítima o sentimento é de satisfação por ter contribuído em uma missão tão grande e que trouxe tanto sofrimento."
O jornalista Raul Mourão relembra que no pouco tempo que ficou em Brumadinho viu uma entrega quase ilimitada, muito humana, no sentido de cuidado com o outro, por parte dos bombeiros, para conseguir resgatar vidas ou corpos ou partes deles para rituais de velório.
"Em um cenário incompreensível, inconcebível para quem preza pela vida humana, esses profissionais, a meu ver, precisaram batalhar para tentar minimizar a dor vinda em avalanche. O pesar espalhado nos cantos da cidade parecia ter cor e odor de lama, moldada por ganância, descaso ou descuido. Pelo contato que tive, por algumas horas, próximo a casas cobertas pelos resíduos, percebi essa tragédia também conversando com moradores e bombeiros civis," relatou.
Entre os profissionais voluntários, ele encontrou um idoso mexicano. "Não sei ao certo o que o movia a estar ali. Mas quando ele disse que o voluntariado não tem fronteiras. Entendo que seria um senso, talvez, de humanidade e respeito, faltantes nas ações da mineradora," explicou
Professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Miguel Fernandes Felippe, que esteve em Brumadinho expedição do projeto Minas de Lama contou que o sentimento de angústia com a falta de assistência do poder público, naquele momento de tantas perdas, se misturou a um sentimento de revolta e perplexidade.
Ele ainda afirmou que o trabalho dos socorristas foi algo impressionante. "Era chocante vê-los sob o sol escaldante, usando recursos próprios, muitas vezes. Não dá pra precisar o estado emocional daquelas pessoas que se doaram totalmente."
Capitão Tristão rememora que a humanidade e trabalho em conjunto foram outros pontos fortes desta missão, que ainda não acabou.
"Ali percebe-se que nenhum órgão sozinho seria capaz de resolver tamanho problema. O que me chamou a atenção também foi o caráter humanitário dos socorristas voluntários. Eles deixaram seus afazeres, suas vidas, para se dedicar a ajudar de todas as formas aquelas pessoas. Muitos deles tinham familiares desparecidos naquela lama, mas encontravam forças na caridade e na humanidade para que seguir adiante.
"Em virtude disso, diante de todos os valores que sentimos lá, continuamos firmes em busca das 11 jóias - termo que as famílias adotaram para chamar as vítimas que ainda restam ser encontradas no meio do minério que sobrou a tragédia. Brumadinho se transformou numa grande lição de vida," finalizou.