Foi na última etapa da Semana Zero que Jéssica Madeira Alves, de 25 anos, soldado do CBMSC (Corpo de Bombeiros Militar de Santa Catarina), sentiu que seu corpo chegou ao limite, após passar dias em situações extremas no treinamento para fazer parte da corporação. Ela marchou 8 km pela Beira-Mar de Florianópolis até o Centro de Ensino do CBMSC, percurso completado pela motivação do sonho de se tornar militar.
Para a aluna soldado BM (Bombeiro Militar) Madeira — nome de guerra adotado por ela — esse foi o momento mais marcante da Semana Zero.
“Meus pés já não estavam correspondendo, minha cabeça falava para eu parar porque eu não ia conseguir. E foi naquele momento em que eu senti que não, eu vou conseguir, eu vou até o final. E coloquei a determinação e a vontade de chegar até o fim acima de qualquer coisa”, lembra.
O treinamento enfrentado por Jéssica é a chamada e temida Semana Zero do CBMSC. É um período de testes físicos, psicológicos e de aprendizado antes de ingressarem, de fato, na corporação.
Segundo o comandante do Centro de Ensino do CBMSC, coronel Luiz Gustavo dos Anjos, foram cinco dias de uma semana intensa de oficinas, com tempo reduzido de sono, hora marcada para comer, para descansar e até para ir ao banheiro.
No último dia, os alunos soldados dos pelotões de Florianópolis marcharam da Base Aérea da Capital, no bairro Tapera, até o Centro de Ensino, na Trindade. O trajeto de 16 km é feito após uma noite em claro de exercícios que simulam situações reais, como resgate de pessoas em veículos e salvamento na água.
Em 11 de agosto, quando os dois pelotões da Capital terminaram os exercícios e entraram em forma, uma chuva torrencial que atingia o Estado ao longo da semana havia chegado a Florianópolis. O tempo demandou uma mudança de planos e o trajeto foi encurtado para 8 km.
Soldados testaram a própria resistência na Semana Zero
Na segunda-feira de 7 de agosto, às 7h30, 260 alunos recém-concursados se apresentaram aos 15 batalhões do CBMSC em Santa Catarina. Os alunos se despediram dos familiares, entregaram os celulares e foram para a conferência de enxoval.
A Semana Zero, que começava naquele momento, foi objeto de pesquisa da aluna soldado Madeira na graduação. No entanto, ela reconheceu que a realidade foi “muito mais desafiadora” do que o estudado.
Ela conta que o maior desafio foi a privação de sono. Após fazer as contas, Madeira chegou à conclusão de que dormiu cerca de 7h e meia nos quatro dias da semana.
“Na Semana Zero a gente passou por privação de sono, tinham horários específicos para comer e ir ao banheiro, não era a todo momento, então a gente tinha que controlar a quantidade de água ingerida”.
As duas oficinas que a aluna contou ter mais gostado foram a de resgate veicular. Nela, seu grupo conseguiu tirar uma suposta vítima de um carro prestes a pegar fogo, além de salvamento em altura, que se revelou mais difícil do que Madeira esperava.
Ao longo da Semana Zero, nenhuma oficina resultou em nota ou castigo. No entanto, foi o exercício de salvamento aquático que mais desafiou Madeira.
Conforme o cronograma da Semana Zero compartilhado pelo CBMSC, exatamente às 22h30 de quinta-feira, 10 de agosto, todos os pelotões começaram o mesmo exercício, que consistia em tirar uma vítima afogada da água em uma piscina.
“Tinha um cabo de ponta a ponta na piscina, que estava preso com anilhas como as de musculação. O objetivo era salvar uma vítima no outro lado da piscina e a orientação para a gente cumprir a instrução com êxito era a de submergir na água, segurar o cabo e bater as pernas para ir até a suposta vítima, do outro lado, em apneia”, explica.
O frio tornou a prova um desafio quase que impraticável. Naquela noite, as mínimas previstas pela Defesa Civil Estadual variavam entre 7°C e 17°C em toda Santa Catarina.
“Eu não consegui terminar a prova, acho que foi uma das mais difíceis. A água da piscina estava bem gelada, era como se a gente estivesse no mar, onde entrar em uma água quente seria luxo. Foi com certeza a mais difícil pra mim”.
“Vidas alheias, riquezas a salvar”
Para a aluna soldado BM Madeira, os desafios se mostraram necessários para o seu desenvolvimento como bombeiro, e também a valorizar o que tem em casa.
“Eu acho que para um bombeiro se desenvolver bem é justamente isso que ele tem que fazer, melhorar sempre e ultrapassar os seus limites”.
Natural de São José, ela conta que o sonho de ser militar foi influenciado pelo avô, que serviu ao Exército quando mais novo. Foi somente após se formar em psicologia e atuar na área de investimentos que a soldado percebeu que seu sonho era o mesmo do avô.
Logo após a marcha que marcou o fim da Semana Zero, os alunos encontraram de surpresa os familiares à espera no Centro de Ensino.
“Eu acho que nada explica o quanto que eu consegui realmente valorizar mais a minha família, que eu fiquei com muita saudade, valorizar a comida que eu tenho na mesa e a minha cama, minha boa noite de sono, minha condição de vida”, fala a soldado.
Conforme a soldado, o maior aprendizado foi que os bombeiros trabalham como um único “espírito de corpo”. O 5º pelotão, do qual participou, se chamava “meraki”. O nome significa “fazer com a alma”. O brado criado pelo grupo de 32 pessoas será algo que levará ao longo da carreira:
“O medo é passageiro, mas a glória é eterna.
Somos o Meraki, viemos vencer a guerra
E Meraki, o que quer dizer?
Fazer com a alma, o nosso dever
Combate ao incêndio, resgate, APH
Vidas alheias, riquezas a salvar”
Semana Zero quer ‘desromantizar’ profissão de bombeiro
Dos 260 alunos que passaram no concurso, dois desistiram na Semana Zero. O coronel dos Anjos explica que um deles precisou sair para lidar com questões pessoais ainda no primeiro dia, enquanto o outro, viu que a profissão de bombeiro não era para ele.
Conforme o comandante do Centro de Ensino, o objetivo da Semana Zero é mostrar a rotina e os desafios que os soldados devem enfrentar ao longo da carreira. O coronel lembrou dos desastres, como o de Blumenau em 2008, e o Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.
“Existe essa tendência de romantização da profissão, essa coisa mais hollywoodiana de herói. Mas a realidade é que essa profissão lida com muito sofrimento, muita exigência física, muito preparo, com uma necessidade de estar sempre pronto e ser capaz de vencer desafios bem relevantes”.