O instinto treinado com anos de experiência e capacitação pode resultar em habilidades heroicas. É assim que o bombeiro militar, cabo Vinicius Expedito, agiu ao se arriscar para salvar seus colegas e uma vítima que caiu no Córrego do Onça, na Região Nordeste de Belo Horizonte.
O caso ocorreu em 14 de janeiro. Naquela quinta-feira, a equipe de bombeiros do Batalhão de Emergências Ambientais e Resposta a Desastres (Bemad) saiu para resgatar um homem que estava rastejando dentro do córrego canalizado, um local de aproximadamente cinco metros de altura, na altura do Bairro São Gabriel, na comunidade Beco Valadares.
Quando os militares chegaram, o sargento Thales Leite e o cabo Victor Bruno se protegeram com roupa específica para evitar contaminação com o rio poluído e desceram para tirar o rapaz. No entanto, o homem não foi cooperativo com a ação, pois, segundo os militares, ele estava em um surto psiquiátrico.
Vídeos gravados pelos moradores da região mostram que o rapaz chegou a entrar em luta corporal com a dupla que tentava o resgate. Sem a colaboração do homem, os militares acabaram perdendo a aderência com o solo e começaram a escorregar. Nesse momento, o cabo Vinícius se prontificou a descer do jeito que estava, pulou dentro do córrego e conseguiu buscar os três homens com ajuda do sargento Wesley Faria.
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“A vítima começou a se debater com os meninos dentro da água. Num dado momento os três escorregaram. Quando eu vi que o cara tombou e eles estavam descendo em direção à cachoeira, vi que não tinha estabilidade nenhuma. Simplesmente joguei a corda na mão do sargento Faria e falei que ia descer. Foi quase uma queda livre. Eu corri na direção deles, peguei o rapaz pelo pescoço pra dar estabilidade. Na hora que encontrei com eles, instintivamente eu pensei em andar de costas e estabilizar o rapaz na parede. Aí que começam as filmagens”, relata Vinicius.
Enquanto a vítima pedia para o militar o soltar, Vinicius falava para o rapaz manter a calma: “você vai matar todo mundo, fica calmo”, dizia o bombeiro. Enquanto isso, o sargento Leite e o cabo Bruno fizeram as técnicas para travar o homem na corda.
“Num dado momento o Victor Bruno me deu uma corda pra gente tirar ele daquela condição. Na hora que eu afrouxei, ele ficou agressivo de novo, abaixou o pescoço e, quando pensa que não, ele me deu uma bocada no braço e dava soco na cara do sargento Leite”, contou Vinicius.
“Foi tudo muito rápido. Depois, friamente pensando, foi no instinto mesmo. Nem imaginava como era aquele lugar. Na hora a gente nem pensa, só quer resolver. A mordida foi o de menos”, acrescentou.
Perigo iminente
O oficial que coordenou a ação, tenente André Dutra, lembrou que, logo à frente do local em que acontecia o resgate, havia uma queda d’água com muitas pedras, também conhecida como “cachoeira” pelos moradores. “Nosso medo era de que eles escorregassem e caíssem”, disse.
De acordo com Dutra, a rápida ação conseguiu acabar com o risco de todos caírem na cachoeira, sobretudo, com o risco da abertura de comportas da barragem da Pampulha, que aumenta consideravelmente o nível do córrego.
“Seria uma fatalidade com certeza. Além da agressividade da vítima e da contaminação do córrego, tínhamos outro problema, que é a época de chuva. Não teria a menor chance de sobreviver se a comporta abrisse”, ressaltou o oficial.
Pela primeira vez
Com a subida do rapaz, ele precisou ser contido com a ajuda de policiais, já que seguia se debatendo, ofendendo e ameaçando os bombeiros militares. Ele foi levado para a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) Norte para receber atendimento médico.
Segundo relatos dos moradores, o rapaz não é morador da região. “Essa pessoa não mora aqui, pra mim ele estava em um momento de surto, nem estava com cara de que usou droga. Outras pessoas falam que ele estava passando na beirada e escorregou”, conta o pintor Diego Rodrigues Ferreira, de 34 anos.
O morador presenciou toda a ação. “Quando os dois bombeiros desceram pra tirar ele, o homem começou a reagir. Deus soco na cara de um e ficou a guerra dentro da água. Um outro rapaz desceu, amarrou na corda, fez uma coisa de louco. Pegou o cara (vítima) e tirou os três da área de risco”, conta.
Diego vive no local desde criança e já presenciou outras ocorrências de resgate. Ele contou, inclusive, que já ajudou a salvar pelo menos cinco pessoas no rio. A novidade foi a falta de cooperação da vítima.
“Aqui na favela ninguém nunca viu isso. Foi muito dificultoso e perigoso. O cara não é magro, ainda mais surtado, não tem quem segura. Todo mundo já viu bombeiro tirar pessoas de lá, mas nunca desse caso, do cara colocar os bombeiros em risco”, lembra a testemunha.
“Eu já vi muitos bombeiros tirando, mas as pessoas não reagiam. Esse homem não queria ajuda e ainda colocou as vidas dos bombeiros em risco. O bombeiro podia simplesmente soltar o cara e deixar ele cair na água, mas não fez”, observa.
O tenente Dutra exaltou a ação em equipe. “Todo mundo é digno de ser recompensado, mas o cabo Vinícius demonstrou uma abnegação, se dispôs a correr um sério risco porque viu que os colegas dele corriam um sério risco. Ele assumiu o risco e com muita competência conseguiu tirar os militares e salvar a vítima”, conclui.
Abnegação por sobrevivência
O perigo do instinto está aliado à técnica. Aos 36 anos, sendo 12 deles dedicados à profissão, o bombeiro Vinicius Expedito de Brito e Silva conta com diversos certificados de cursos de aperfeiçoamento que o ajudaram a pensar de forma rápida e garantir o sucesso da operação.
“Cada vez que a gente se capacita é uma oportunidade a mais de voltar para casa. Quanto mais segurança, a chance é menor de erro”, acredita o militar. Naquele dia, não somente ele retornou para casa, mas também os companheiros.
Desde 2009 na corporação, a experiência em grandes ocorrências também o fizeram mais forte. Vinicius participou dos três rompimentos de barragens recentes: Herculano (Itabirito, 2011), Fundão (Mariana, 2015) e B1 na Mina Córrego do Feijão (Brumadinho, 2019).
Ele estava trabalhando no dia da tragédia em Brumadinho assim como um ano depois, no dia da “chuva de 100 anos” em Belo Horizonte e região metropolitana.
Outro destaque são os 40 dias de empenho na inédita operação de ajuda humanitária em Moçambique após os danos causados pelos ciclones Idai e Kenneth, em abril de 2019.
E, durante as dezenas de incêndios atendidos ao longo dos anos, no ano passado, a mesma equipe do resgate no Córrego do Onça quase foi pega pelo fogo durante um combate na Serra do Rola-Moça ao resgatar um brigadista.
A coleção de histórias pra contar tem uma razão aliada ao propósito de sua fé. “É o que eu escolhi e Deus me colocou pra fazer. Está em mim, na gente que é bombeiro. O próprio juramento fala: ‘mesmo com o sacrifício da própria vida’. Ainda mais quando se trata de vidas, que é o que estava em jogo. Eram três vidas em jogo. É um valor mais do que alto para se arriscar”, garante o cabo Vinícius.
Enquanto isso, a família se divide entre o orgulho e o coração apertado. “Eu até evito de contar tudo que a gente passa”, confessa Vinicius, em tom de risada. “A família está o tempo todo 100% preocupada, mas, apesar disso, são muito compreensíveis e me dão todo apoio.”
Por fim, ele resume o porquê de ser bombeiro: “é por amor”, explica. “Eu tenho amor por ser bombeiro. Todos os dias eu agradeço a Deus. É uma escolha, mas, acima de tudo, a profissão tem que te escolher. Ninguém é herói, é só um instrumento de Deus para salvar pessoas. Que tem conhecimento, equipamento e acima de tudo boa vontade”, conclui.