Uma integrante do Corpo de Bombeiros Militar em Porto Alegre já foi jubilada, viu colegas se aposentarem e recebe, de forma deliberada, tratamento privilegiado: é a vira-latas Preta, acolhida há cerca de 10 anos por socorristas do 1° Batalhão, sediado no bairro Cidade Baixa.

— Já tentaram levar nossa veterana em definitivo para casa, mas aí dá briga com a gente — conta o sargento Gilmar Gomes, 43 anos, há 25 no batalhão.

 
Na sexta-feira (7), a reportagem de GZH conheceu um cantinho que homenageia os trabalhadores do quartel, com fotos das equipes operacionais expostas em uma parede. A única a ter um quadro só para si é Preta. O mosaico mostra a mascote sentada em uma poltrona, ao lado de uma jaqueta com a bandeira do Rio Grande do Sul costurada. Retratos dela sobre um pano no piso e usando sua farda vermelha, com o escrito “cão bombeiro”, complementam a arte.
 

A primeira rosnada no portão, ao notar o carro da reportagem, cedo da manhã, se transformou em lambidas após o acesso à instituição. Dócil, a cachorra já aparenta ter ultrapassado o porte médio, e pesa mais do que o equipamento carregado pelos combatentes em ocorrências, garantem os servidores.

No sofá de três lugares, ela ocupa o assento de um adulto, como comprovam imagens do arquivo pessoal do sargento Gomes. Ele é o mais antigo em atividade na sede — depois vem a mascote na fila por tempo de serviço. O militar foi um dos bombeiros que a retirou da rua, no início da década de 2010. O animal era mais magro e ainda em fase de crescimento e foi abandonado ou fugiu de algum lar, acredita.

Parceiros se aposentaram, e a guaipeca segue na ativa, brinca o sargento, ao contar os anos de trabalho da “cãopanheira”. O semblante muda quando ele relembra o dia em que ouviu um estrondo vindo da Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto. Ao sair para o pátio, viu Preta sangrando. Havia sido atropelada.

— Um sufoco. Encontramos uma clínica aberta aquele horário, à noite, e dividimos as despesas. Depois, outra colega continuou o tratamento, castramos também, e pagamos tudo. Foi uma mobilização — afirma. 

Em 2019, a mascote foi vista pela reportagem no Desfile Farroupilha de 20 de Setembro, realizado na Avenida Edvaldo Pereira Paiva. A convidada especial observava imóvel os cavalarianos, e deixava de lado a formalidade quando recebia afagos e abraços da tropa.

Preta não é treinada para salvamentos. No entanto, compreende quando o efetivo é acionado em emergência. Ouve a sirene e se afasta do portão de saída dos caminhões. Circula nas viaturas eventualmente, quando não há deslocamento para atendimentos.

A profissão, que exige alerta constante e urgência no combate, expõe os profissionais a riscos iminentes durante as abordagens. Quando retornam de algum chamado estão exaustos. Não são poucas as vezes em que a tristeza abate o bombeiro, especialmente nos casos com vítimas. 

— Parece que ela sente. Cheira um por um dos colegas, e renova a energia, é uma terapia para nós — define o sargento.

Nas folgas dos plantões, os militares a levam à praia ou para passar alguns dias em casa. Ao ser convidado para uma entrevista na Rádio Gaúcha, Gomes teve de recorrer a outro bombeiro — o colega havia levado Preta para passar a noite em sua residência. 

O sargento tem no telefone celular registros do filho Bernardo, de cinco meses, deitado com a pet. O pai babão observa o bebê de pernas gordinhas e divide os carinhos entre ele e a mascote. 

— Ela é um sucesso. Vai ficar aqui no quartel até o seu último dia — diz, esperançoso que demore longos anos para a despedida.