por Yuri Cougo Dias

Na segunda metade do século XX, um espaço na avenida Sete de Setembro era marcado pelo entretenimento, com a exibição de cenas de aventura, romances, guerras, comédias, dos quatro cantos do mundo. Porém, naquele fatídico dia 19 de março de 1997, a ficção no telão, foi substituída por uma tragédia real. Numa quarta-feira de céu ensolarado e tempo limpo, o dia transcorria normalmente em Bagé. Mas quando os ponteiros do relógio apontaram 16h40min, tudo mudou. A tranquilidade de “mais um dia normal” foi trocada pelas chamas de um incêndio que veio a consumir boa parte da estrutura dos apartamentos em que residiam muitos moradores. Neste domingo, completam-se 20 anos do sinistro no Edifício Avenida. O jornal Folha do Sul relembra o fato e traz entrevistas com o proprietário do cinema, Aristides Kucera, com a síndica atual do prédio – que era residente na época -, e cidadãos que, por questões profissionais, estiveram ligados a um dos maiores incidentes dos 205 anos da Rainha da Fronteira.

O caso
Conforme a edição de 20 de março de 1997, do jornal Correio do Sul, o fogo teria começado por um curto-circuito na rede elétrica do cinema. Há várias versões para a causa da catástrofe, mas nenhuma tem a confirmação dos órgãos de segurança da época. Para conter as chamas, o Corpo de Bombeiros foi chamado, no meio da tarde, pelo próprio Kucera. No momento em que o fogo começou a se espalhar, ele relata que não estava no local. “Eu estava em uma reunião com o deputado Luís Augusto Lara, que desejava usar o prédio do Cine Glória para abrir uma casa noturna. Foi quando eu recebi um telefonema de uma vizinha, que me avisou sobre uma fumaça preta que se espalhava no prédio. Naquela hora, não conseguia falar com os bombeiros pelo telefone. Daí, fui pessoalmente a sede deles e avisei do incêndio”, recorda.
Entretanto, a guarnição bageense não era suficiente para conter a elevada proporção das chamas no espaço. Por conta disso, foi solicitado reforço de profissionais de Dom Pedrito, que atenderam prontamente o chamado. O trabalho transcorreu até as 20h. Todavia, a operação adentrou a madrugada, com o objetivo de eliminar possíveis focos de incêndio. Felizmente, não houve mortes, tanto das equipes responsáveis por apagar o fogo, quanto dos residentes no prédio.
Em reportagem publicada no jornal Folha do Sul, de 21 de março de 2012, o sargento Sávio, do Corpo de Bombeiros, integrante da operação, relatou que a ação foi resultado de um conjunto das guarnições da Rainha da Fronteira e da Capital da Paz, com auxílio de vários órgãos públicos, como o Exército, Polícia Civil, Brigada Militar, Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE) e secretarias municipais. Também há de se destacar a grande quantidade de cidadãos que se mobilizaram, com baldes de água e mangueiras, na busca para deter o sinistro. Os apartamentos “81” e o “82” eram de propriedade de Kucera. Por conta disso, permaneceu por cerca de dois anos residindo em um quarto no Hotel Obino. “Naquele dia, em torno das 20h, o proprietário do Hotel Obino, o Teo Vaz Obino, disse para pegar minha família e ir para lá, que não haveria custo”, observa.

Um grande legado
A paixão pela sétima arte fica notória ao conversar com Kucera. Com orgulho, ele enfatiza para a reportagem que a Rainha da Fronteira foi a segunda cidade no Brasil a ter uma exibição pública. A primeira teria sido o Rio de Janeiro. Ou seja, fica claro o valor histórico do município. E dentro desse contexto se enquadra Kucera, que administrou 22 cinemas em Bagé e região. Desses, dois eram alugados.
Inaugurado em 6 de maio de 1957, o Cine Avenida tinha capacidade para mais de dois mil telespectadores. Atualmente, o espaço abriga um estacionamento pago. “Não tinha aparelhos mais modernos no mundo. Eu tinha um telão com 18 metros X 9 metros de altura; uma caixa central de 12 X 8 m. Os alto-falantes eram de primeira linha. Teve uma vez que veio aqui um comentarista de cinema da Zero Hora. Nesse dia, estava passando o filme ‘Piano’. Ele ficou impressionado com o que testemunhou, tanto que colocou no texto que não tinha visto nada igual  ao Avenida”, comenta.
As casas da sétima arte faziam sucesso em Bagé. Kucera reforça o argumento ao expor que a média de frequentadores nos domingos, entre os 22 cinemas, era de 121 mil telespectadores. Com entusiasmo, lembra das exibições de filmes de atores como Teixeirinha e Oscarito. “Eram incríveis, uma coisa de louco”, exalta. Ele ainda sonha em construir mais duas salas do ramo em Bagé. “A cidade foi muito boa para mim. Gostaria de presenteá-la com novas salas de cinema. É um sonho que carrego comigo”, frisa.
Sobre o legado que as exibições do Avenida proporcionaram para o município, Kucera é enfático ao destacar a constante presença de crianças nas sessões, por dois fatores. A primeira está relacionada ao fato de, em muitas ocasiões, os administradores do espaço distribuíam ingressos para alunos da rede municipal. “Mas exigíamos que eles estivessem frequentando regularmente a sala de aula. Cumpríamos um forte papel social”, reitera. E o outro motivo era um tanto curioso. Tratava-se de promoções que, de acordo com a decisão do dia, levava em consideração a altura ou peso para a cobrança do ingresso. “No dia do incêndio fiquei muito triste, mas em nenhum momento eu chorei. Agi o quanto antes. Eu tinha que tomar providências, sem perder a cabeça. Afirmo que o maior legado que o Avenida deixou foi no aspecto cultural para as crianças”, elenca.

Moradora de duas décadas
Fazia apenas 40 dias que a aposentada Rita Cougo, 56 anos, residia no Edifício Avenida. Atualmente como síndica do prédio, ela afirma que estava trabalhando no momento do incêndio. “Eu tinha crianças pequenas, mas no momento elas estavam na escolinha. Quem estava no prédio era minha secretária, que me ligou dizendo que o local era tomado por uma fumaça preta. Eu disse para ela sair de lá o quanto antes. Saí do trabalho e quando vi o fogo, fiquei em pânico. Foi um horror. As pessoas se agitaram no centro da cidade”, detalha.
O incêndio destruiu os vidros do fundo do apartamento de Rita e alguns móveis de um quarto. “Os apartamentos mais atingidos foram os dos fundos. Muitos moradores perderam tudo. Depois do caso, os proprietários montaram uma comissão e passaram a ter reuniões com a prefeitura. Quem fez a recuperação foi a Sistema Engenharia. Tivemos que ficar fora do prédio por dois anos”, conta. Com a restauração do local, a síndica destaca as melhorias que foram feitas. “O prédio ficou extremamente bom. Desde então, buscamos sempre estar regularizados e com documentação em dia”, enaltece.

A recuperação
O responsável pela obra de recuperação do prédio foi o proprietário da Sistema Engenharia, Emílio Mansur. Vencedor da licitação, ele comenta que o valor orçado foi de R$ 868 994. A ordem de início foi dada pelo município em 19 de julho de 1997. Ou seja, quatro meses depois do incidente. A conclusão ocorreu em 22 de março de 1998.
Mais de 50 funcionários estiveram envolvidos no empreendimento, que envolveu a recuperação de 29 apartamentos, da cobertura, três lojas comerciais e ampliação do hall de entrada. Os serviços realizados foram os de pavimentação, esquadrias, rede elétrica com nova subestação, hidráulica, telefonia, revestimento, pintura, entre outros. “Os trabalhos ocorreram dentro do cronograma previsto, pois  obtivemos um grande apoio do síndico da época, o senhor Sebastião Ferreira”, pontua.
De acordo com laudo técnico da construtora, o incêndio aconteceu nos fundos do prédio, acima da sexta laje. Os maiores danos foram registrados no décimo pavimento. “Esta obra foi um desafio, pois estávamos fazendo uma intervenção em um prédio símbolo de Bagé. (...) Este desafio da obra do Edifício Avenida fez a empresa crescer. Por sorte só houve perdas materiais, mas o incêndio nos expôs a necessidade de reformas em prédios antigos. Hoje, após 20 anos, é muito gratificante ver o prédio funcionando com todos os moradores e sendo preservado”, conclui.
Mesmo com a destruição causada pelas chamas, o Cine Avenida deixou sua marca na história de Bagé. E não apenas pelos acontecimentos registrados naquele 19 de março de 1997. Mas por proporcionar divertimento ao passeio de domingo, de famílias, casais e amigos. O telão, os filmes, as poltronas e pipocas daquele espaço ficaram guardadas na memória dos bageenses.

Fonte: Jornal Folha do Sul