Dos servidores estaduais do Rio Grande do Sul que se licenciaram de suas funções para concorrer na próxima eleição municipal, quase 20% são ligados à Segurança Pública. Em levantamento solicitado pelo Correio do Povo, o governo do Estado contabilizou que há 92 candidatos oriundos da Brigada Militar, Polícia Civil, Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) e Instituto Geral de Perícias (IGP) na disputa de 2020. Na avaliação de especialistas, o fenômeno das candidaturas de policiais a cargos eletivos em todo o Brasil tem se fortalecido ao longo dos anos e pode ser explicado por questões como o crescimento de discursos sobre o combate à criminalidade.
Ainda que bem inferior ao número de candidatos ligados Secretaria da Educação, que somam mais de 74% dos servidores estaduais nas disputas municipais no Rio Grande do Sul, as candidaturas da Segurança Pública podem ser consideradas expressivas. Há, por exemplo, apenas 14 candidatos ligados à pasta da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural e dez licenciados da Secretaria da Saúde.
Somente em Porto Alegre, dois candidatos a vice-prefeito foram delegados de polícia: Fernando Soares, que concorre na chapa pura do Republicanos encabeçada por João Derly, e João Carlos da Luz Diogo, que vem pelo PSD ao lado de Valter Nagelstein. Outros nomes fortes ainda concorrem ao Legislativo, como é o caso da vereadora Comandante Nádia Gerhard (Dem) e do coronel reformado da Brigada Militar, Mário Ikeda (PRTB), que chegaram a ser pré-candidatos à prefeitura, mas saíram da disputa pelo Executivo para apoiarem Sebastião Melo (MDB).
Outros nomes de peso também buscam uma vaga na Câmara, como o coronel Oto Eduardo Amorim (MDB), ex-comandante do Policiamento Metropolitano da BM. À esquerda, Leonel Radde, policial civil que se denomina “antifascista” e ganhou destaque nas redes sociais, é candidato pelo PT. Na Capital, um total de 17 candidatos a vereador utilizam em seus nomes na urna as funções coronel, delegado, policial, tenente, comandante, inspetora e comissário.
O policial na política
Antes da popularização de diferentes visões sobre a premência da pauta da segurança pública, a própria legislação brasileira facilita um número maior de candidaturas não só de policiais civis e militares, como de funcionários públicos em geral. Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal, Arthur Trindade explica que, diferentemente de outros países, no Brasil os servidores não precisam deixar as corporações para concorrer. Basta se licenciarem durante o período eleitoral e, caso não sejam eleitos, retornam normalmente para as funções anteriores. “Resumindo: o policial que vai se candidatar não tem nada a perder do ponto de vista institucional legal”, avalia.
No que diz respeito à reputação, explica o ex-secretário, também não há ônus em participar da disputa. Conforme Trindade, o policial que se afasta para concorrer não costuma ser mal visto dentro da cultura organizacional, como ocorre, por exemplo, nas forças armadas. Para o conselheiro do FBSP, as candidaturas e as demandas dos servidores da Segurança Pública são legítimas, mas, na prática, muitos candidatos retornam para suas funções fazendo política. “Nesse sentido, não vejo com bons olhos. Basta olhar para outros países para verificar que o Brasil é o caso mais pernicioso.”
Mas para Rodrigo González, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Ufrgs, tudo está ligado a uma questão de narrativa, principalmente no que diz respeito a policiais militares. Segundo ele, o candidato que se apresenta com um discurso pró-corporação é sempre bem-visto, enquanto que aquele que tem uma visão mais crítica costuma ter mais dificuldades internas. “Órgãos como a Polícia Federal são muito mais abertos, no sentido de que não é considerada uma falha contestar a direção, enquanto que as polícias militares e o Exército têm por tradição uma noção de hierarquia em que a base não contesta os superiores. Isso é visto como uma quebra de princípios”, explica.
O que explica as candidaturas oriundas da Segurança Pública?
Além da questão legal, o aumento da insegurança pública, das taxas de violência e, principalmente, a percepção da sociedade com relação a esses fenômenos podem explicar o aumento das candidaturas de servidores das polícias. Esta é a avaliação do professor de Direito da PUCRS, Rodrigo de Azevedo, que coordena o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC). Segundo ele, a avaliação geral da população nos últimos anos tem sido de que a criminalidade está fora de controle e que a Segurança não é prioridade, o que, por sua vez, contribuiu para a premissa de que a polícia deve agir na política.
Para Azevedo, não há dúvidas de que a questão está ligada ao bolsonarismo. De acordo com ele, o discurso de prioridade de combate à criminalidade, valorizando o trabalho policial, é um dos elementos que compõem a figura de Jair Bolsonaro desde que o atual presidente era deputado federal. “É uma valorização do ponto de vista simbólico, da proteção de uma narrativa de que os direitos humanos são a defesa de bandido, que qualquer crítica feita à polícia vai contra o interesse do combate ao crime”, explica o professor. “É uma retórica, mas muito vazia em termos de conteúdo prático, tanto de valorização profissional quanto de mecanismos de combate ao crime, de prevenção, principalmente.”
Apesar das candidaturas de policiais hoje estarem muito associadas a uma política que pode ser considerada populista, em retrospecto, elas começam a ganhar força a partir do final da década de 1980, analisa o cientista político João Trajano Sento-Fé. De acordo com ele, foi nessa época que a Segurança Pública passou a ser um dos temas centrais da agenda eleitoral e também quando, nos âmbitos federal e estaduais, começou a haver mais investimentos, qualificação e formação dos profissionais das polícias. “São insumos importantes para criar esse ambiente”, avalia Sento-Fé, que é professor associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). “O efeito que se esperava era o aprimoramento do trabalho policial, para que funcionasse e as instituições estivessem mais sintonizadas com o estado de direito.”
Um dos resultados, na avaliação do cientista político, foi dar ao policial um estímulo para poder falar por si próprio e ter a Segurança Pública como agenda. A isso, soma-se o advento da Internet e das redes sociais. Grupos de mensagens e trocas de informação se tornaram mais acessíveis do que nunca, dando voz igual a todos e uma grande capacidade de mobilização. Para o professor, todo este contexto também traz à tona fatores que ligam o sinal de alerta. “O discurso público sobre Segurança Pública nos últimos anos se orientou para mais próximo do discurso comum, corporativo, que encontramos nas polícias: valorização do uso da força, enfoque na abordagem da segurança como um campo de guerra contra o inimigo. Pode ser o tráfico de drogas, o crime organizado, pode ter vários nomes”, explica.
Essa narrativa, avalia o professor da UERJ, ganhou terreno no debate político dos últimos anos e é fértil para que policiais em consonância com ela se apresentem como representantes políticos. O cenário de hoje é o que o cientista político define como uma combinação perversa formada por uma chancela ativa para as práticas de combate descontrolado à insegurança, uma apatia de parte significativa da sociedade e uma incapacidade de reação política. “Estamos num momento de exaustão de uma certa lógica, que não chegou a emplacar, dos direitos humanos, da universalização dos direitos”, afirma.
Cenário atual
Essa lógica apontada por Trajano, no entanto, foi fortemente contraposta em 2020. A morte de George Floyd, um homem negro assassinado por um policial branco em 25 de maio, nos Estados Unidos, desencadeou grandes protestos e escancarou a questão da violência policial no mundo, ganhando fortes discussões no Brasil.
Para Rodrigo Azevedo, da PUCRS, isso não deve representar uma perda de apoiadores de propostas policialescas, mas tem um poder de mobilização de um campo alternativo, como de fortalecimento de representantes do movimento negro e até de grupos de policiais já identificados como antifascistas, que têm se organizado dentro das polícias para tentar construir um campo contrário a uma linha de combate ao crime de forma descontrolada. “Parece que está tendo um efeito, precisamos avaliar depois se vai ter consequências do ponto de vista eleitoral.”
Assim como Azevedo, o professor da UERJ acha que o momento é de muita imprevisibilidade. Ele, no entanto, é pouco otimista. “Nossa sociedade, depois desses anos de Nova República, de esforços de democratização, continua sendo extremamente hierarquizada, piramidal, racista, violenta e com taxas muito baixas de tolerância. Acho que essa retórica bolsonarista, que valoriza o enfrentamento, a arma, as soluções radicais para nossas mazelas, tem um apelo enorme junto a uma parcela grande da população.”