Quinze anos atrás, mulheres corriam, nadavam e suavam em exercícios de flexão e abdominais para superar uma barreira que, até então, parecia intransponível. Ao longo dos três anos anteriores, vinham tentando passar pelo rigoroso teste que seleciona salva-vidas no Estado. Lutavam pela chance de ocupar um posto que até então nenhuma mulher havia conquistado no Rio Grande do Sul. Mas sempre acabavam reprovadas nas provas físicas. No final de 2001, uma das candidatas deu uma declaração premonitória:
– É muito importante quebrar essa barreira. Uma vez que seja formada a primeira salva-vidas do Estado, outras virão – afirmou Simone da Rosa Baldi, então com 26 anos.
Naquele mesmo ano, a soldado Vânia Maria de Nale, também de 26 anos, conseguiria um lugar inédito entre os homens para zelar pela segurança dos banhistas gaúchos. Atrás das braçadas de Vânia, que hoje atua no Batalhão Ambiental da Brigada Militar na Serra, seguiram-se outras colegas de farda. Nos anos seguintes, as praias do Rio Grande do Sul sempre contaram com a presença delas nas guaritas.
A cifra de 21 mulheres em ação hoje no Estado pode parecer pequena diante do universo de mil salva-vidas da Operação Golfinho, mas é o maior contingente feminino já registrado e fruto de histórias pessoais de desafio e superação. Além de enfrentar o traiçoeiro mar gaúcho, com frequência precisam resgatar banhistas com peso e altura muito superiores aos delas – o que conseguem devido a um exaustivo treinamento. Graças a essa disposição em quebrar tabus e preconceitos, neste verão uma militar alcançou o posto de comandante de praia pela primeira vez na história.
No balneário de Nova Tramandaí, a capitã Karyn Savegnago de Oliveira, 31 anos, tem sob seu comando 60 salva-vidas militares ou civis – todos homens – distribuídos por 17 guaritas. Como responsável por um pelotão inteiro, cuida da parte administrativa, procura contornar necessidades de efetivo, trata da conservação das guaritas com a prefeitura e circula pela beira-mar a fim de fiscalizar o trabalho dos subordinados. Quando há necessidade, como em dias de praia superlotada, pode auxiliar na vigilância do mar.
A primeira comandante começou a carreira à beira-mar como salva-vidas civil em 2006, quando foi assunto de uma reportagem de Zero Hora sobre os desafios das mulheres na profissão. Ainda estudante de Direito, com apenas 20 anos, já anunciava que pretendia se tornar bombeira e seguir zelando pela vida dos banhistas no litoral. Hoje, considera que sua ascensão carrega um significado simbólico:
– Acho importante mostrar para as meninas, desde criança, que elas também podem seguir essa carreira.
Outras salva-vidas em ação nesta temporada, como Mariana de Bem, 23 anos, Tatiane Purper Reis, 27, ou Karine Gisele Konig, 30, mostram que ainda há desafios a superar: desconfiança de banhistas sobre sua capacidade de resgate, comentários e brincadeiras inconvenientes. Mas confirmam que os avanços conquistados nos últimos 15 anos superam os eventuais dissabores.
– Muitas meninas se aproximam, conversam, pedem para tirar fotos.
A gente percebe que é uma inspiração para elas – comemora Karine, que há cinco anos se dedica a salvar vidas em um litoral cada vez mais protegido pelo olhar feminino.
Vencendo a desconfiança
As mulheres que salvam vidas enfrentam algo mais do que as variações do tempo e as condições de risco do mar aberto que caracterizam a costa do Rio Grande do Sul: elas também têm que lidar com a desconfiança que ainda resta em parte da população sobre a capacidade feminina de efetuar resgates.
Tatiane Purper Reis, 27 anos e 56 quilos distribuídos em 1m63cm de altura, recorda que, na temporada passada, ouviu um questionamento de um homem que ela define como “bem grande e forte”:
– Tu acha mesmo que conseguiria me tirar da água?
No começo deste mês, ela teve chance de provar na prática o valor do treinamento realizado. Um homem de 40 anos e seu filho de 16 caíram em uma corrente de retorno (que puxa mar adentro) e começaram a se afogar. O homem gritava:
– Por favor, não deixa eu e o meu filho morrermos!
A militar e o colega de guarita, Luiz Alberto Veron, 28 anos, pularam na água: ele resgatou o adolescente, Tatiane tirou das ondas o pai, muito maior do que ela.
– Depois do salvamento, muitos banhistas vieram falar comigo – conta ela. – Perguntavam: “Foi tu que tirou ele? Bá, parabéns!”. É porque olham para mim, para o meu tamanho, e pensam: “Não tem como dar certo”. Mas a gente treina, aprende.
Tatiane revela que teve de superar obstáculos até dentro de casa para garantir seu lugar na areia. A mãe não gostou muito da ideia de ela trabalhar no mar pelo risco da atividade. Somente depois de testemunhar o treinamento e o esforço da filha ficou mais tranquila. Mas o pai não deixa de ver o trabalho com certo desagrado:
– Meu pai não chega a ser contra, mas diz que esse é um trabalho masculino. Eu insisto que tem lugar para mulher aqui também – sublinha Tatiane.
Com 1m63cm e 61 quilos, a salva-vidas civil Mariana de Bem, 23 anos, conta que uma vez já lhe perguntaram se sabia nadar. O autor da provocação não imaginava que ela compete em provas de natação estaduais e nacionais – das quais já saiu vitoriosa diversas vezes – e enfrenta o mesmo processo de seleção e preparo que os homens para ocupar uma guarita em Mariluz.
– A Mariana tem preparo físico de atleta e uma técnica muito apurada – elogia o capitão Vinícius Lang, comandante das praias de Imbé Norte e Imbé Sul.
A pré-seleção superada por ela consiste em correr e nadar em tempos pré-determinados, além de passar por três provas finais: um duathlon de 400 metros de natação e 2 mil metros de corrida, transpor a plataforma de Tramandaí (nadar ao redor dela) e, por fim, realizar uma simulação completa de salvamento.
Essa simulação exige precisão nas diferentes etapas em que se divide um resgate:
• Salto da guarita
• Clipagem do rescue can (prender a boia usada pelos salva-vidas, por uma corda, ao cinto)
• Corrida saltitando nas primeiras ondulações seguida por uma “golfinhada”, ou mergulho para ganhar tempo.
• Nado de aproximação, com a cabeça sempre para fora d’água.
• Abordagem e reboque da vítima para fora do mar.
• Colocação da vítima na areia, de lado, e atendimento pré-hospitalar.
Quem tirar uma nota inferior a 8 na média de todos esses quesitos não poderá vestir a malha de salva-vidas. Por isso, o curso a que todos os candidatos se submetem tem duração de 20 dias.
– Já salvei gente até de folga. Ao avistar um guri de uns 15 anos se afogando, entrei no mar sozinha, sem boia, só de biquíni e cabelo solto. Felizmente, deu tudo certo – recorda Mariana.
Em razão de tanto esforço e da presença cada vez mais frequente na beira da praia, as mulheres já são mais respeitadas na profissão. Porém, ainda ouvem vez por outra comentários impróprios. Parte das cantadas fora de lugar pode ser atribuída ao imaginário da salva-vidas sensual construído por programas de TV como a série americana Baywatch, estrelada por nomes como Pamela Anderson.
– O pessoal respeita bastante, mas, às vezes, vem alguém e diz: “Estou indo lá me afogar”, ou se joga na areia e finge que está se afogando – conta Tatiane. – É bobagem. Acho engraçado, mas não dou bola.
Família de salva-vidas
A caminhada das mulheres rumo às guaritas levou ao surgimento de famílias de salva-vidas, como a da soldado Karine Gisele Konig, 30 anos. Karine conheceu o atual marido, Ricardo, 35 anos, no curso de preparação para efetuar resgates. Hoje, os dois são pais de Enzo, cinco anos, que duas semanas atrás realizava um curso de salva-vidas mirim na beira da praia de Balneário Pinhal enquanto a mãe vigiava os banhistas do alto de seu posto de observação, a menos de cem metros.
– Pelo jeito, vai querer seguir a profissão também. Diz que quer ser bombeiro e já sabe nadar – comemora Karine.
Depois de ficar fora de um par de temporadas na praia em razão da gravidez, a militar conta que voltou a trabalhar no veraneio na companhia de Enzo. Em seus horários de folga, o marido assumia a função de guarnecer a orla para que ela pudesse amamentar o filho sem precisar deixar a beira-mar.
Eu amamentava o Enzo na guarita mesmo e depois voltava ao serviço. Chamava um pouco a atenção das pessoas uma salva-vidas amamentando, mas é uma coisa natural – afirma.
Logo depois de concluir sua participação no curso de salva-vidas mirim, o menino correu para o local de trabalho da mãe e subiu as escadas da guarita com desenvoltura de adulto. Só ficou chateado quando soube que teria de descer – e não poderia pular no monte de areia que os salva-vidas costumam erguer para amortecer a queda ao partir para um resgate.
O curioso na trajetória de Karine é que ela tinha pouca intimidade com o mar até decidir virar salva-vidas. Natural de Santa Maria, costumava passar apenas uma semana na costa gaúcha por ano, ou nem isso. Foi somente quando já era militar havia cerca de três anos, trabalhando em Porto Alegre, que decidiu se dedicar aos salvamentos por influência de colegas de corporação.
– Como sempre gostei de nadar, tive apenas de me aperfeiçoar. Me criei em rios e açudes – conta Karine, atualmente moradora de Alvorada.
Os homens que trabalham ao lado de mulheres como Karine, Karyn, Tatiane ou Mariana testemunham que elas não deixam nada a dever em comparação ao contingente masculino.
– É a primeira vez que trabalho ao lado de uma mulher, e posso dizer que são profissionais iguais. Penso que até treinam mais duro do que nós para compensar a parte física – dize o salva-vidas Peterson Jardim Lopes, 36 anos, 12 deles realizando resgates no litoral.
Mas nem tudo é desgastante no trabalho, garante Karine. Além da óbvia satisfação de salvar banhistas, a atividade à beira-mar tem suas pequenas compensações.
– O bronzeado está sempre em dia.
Vaidade em segundo plano
Imagine uma profissão em que você fica exposta diariamente ao vento, ao sol, à chuva e à maresia. Esta é a rotina das salva-vidas. Pele e cabelos sofrem? Sim. Mas é o de menos diante da missão de garantir a tranquilidade de quem se diverte à beira-mar.
– A gente não se importa muito com a vaidade. A segurança do veranista vem em primeiro lugar – garante a salva-vidas civil Mariana de Bem.
Para ela, as marcas do cuidado com a beleza estão em um pequeno cristal incrustrado em um dente, nos delicados brincos que brilham ao sol e nas unhas pintadas em cuidadosas e coloridas linhas geométricas:
– Na verdade, é um aplique. A fase de treinamento acaba com a unha da gente porque temos de fazer muitos exercícios de apoio e, se estiver comprida, acaba quebrando.
As tranças são o penteado padrão entre as salva-vidas. Não é questão de estilo: o cabelo solto representaria um risco para o salvamento. Mas os fios recebem atenção. A capitã Karyn de Oliveira não deixa de passar um protetor solar para cabelos antes de rumar para a orla. Já Tatiane Reis, quando retorna para sua cidade, Lajeado, faz uma hidratação completa para recuperar os estragos do veraneio:
– Não tem jeito, o cabelo fica um pouco destruído. Passo creme todo dia para fazer a trança, pela manhã. De resto, é usar muito protetor solar e rezar para a pele não envelhecer muito.
A atenção à pele exige o ritual de renovar o protetor solar várias vezes ao dia. Mas são só detalhes que já fazem parte da rotina.
– Nada é difícil porque, para mim, isso é a realização de um sonho que eu plantei, há 11 anos, quando comecei ainda como civil – diz Karyn.
A oficial traz em seu braço a melhor combinação entre responsabilidade e vaidade. Pouco abaixo do ombro, mandou tatuar em inglês a inscrição “A mission to save lives” ou, em português, “Uma missão para salvar vidas”.
Fonte: Donna ZH / Por Marcelo Gonzatto
Foto: Anderson Fetter