O Rio Grande do Sul vive sob o Regime de Recuperação Fiscal, um modelo que impõe severas restrições a novos gastos, especialmente à criação de cargos públicos. Em tese, o Estado não poderia ampliar significativamente seus quadros até 2030. Mas, na prática, o que se observa é uma seletividade curiosa e cada vez mais conveniente: há espaço para algumas áreas e silêncio absoluto para outras, igualmente essenciais.
De um lado, o governo invoca o regime fiscal como escudo político para negar ampliações de efetivo em setores vitais, como o Corpo de Bombeiros Militar (CBMRS), que literalmente carrega a vida da população nas costas. De outro, aprova projetos que criam centenas de cargos e funções gratificadas, engordando a folha de quem já ocupa posições de comando nas forças de segurança. Tudo isso em regime de urgência, sem o mesmo zelo quando se trata de reforçar as guarnições que enfrentam incêndios, enchentes e desastres climáticos.
No último ano, acompanhamos proposições tramitando a toque de caixa, não para recompor efetivos essenciais à segurança da população, mas para instituir “gordas funções gratificadas” destinadas a servidores que já desempenhavam aquelas funções por dever de ofício e compromisso institucional. Um paliativo de luxo em plena austeridade fiscal.
É justo reconhecer um ponto positivo: a eliminação de um nível de soldado, que trouxe certo alívio salarial a uma parcela dos militares. Mas a medida, embora simbólica, tem caráter imediato e paliativo, bem distante do que propõe a Lei Orgânica Nacional (LON), um verdadeiro projeto de Estado para as corporações militares. O que se viu foi mais um movimento improvisado e político, reflexo de um modelo de gestão que retira direitos estruturais enquanto distribui gratificações pontuais.
Recentemente, o governo encaminhou à Assembleia Legislativa o Projeto de Lei Complementar que regulamenta a Polícia Penal (PLC n.º 244/2025), criando e estruturando mais de 12 mil cargos efetivos nas funções de policial penal, analista e técnico administrativo. A medida cumpre a Emenda Constitucional nº 104/2019, que reconheceu a Polícia Penal como órgão da segurança pública, e busca corrigir deficiências históricas do sistema prisional. É uma pauta justa, pois a categoria há muito tempo carece de regulamentação, valorização e estrutura. Contudo, o contraste de prioridades é inevitável: enquanto o governo investe na ampliação do efetivo prisional, o Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul (CBMRS) continua com um quadro de pessoal insuficiente, exausto e fora da proporção da necessidade social.
A reportagem publicada pela Zero Hora desta semana escancara um padrão de contradições que se repete no Estado: mesmo sob o Regime de Recuperação Fiscal, o governo e o Parlamento seguem aprovando projetos com alto impacto financeiro para estruturas já consolidadas, como o Poder Judiciário. Foram 30 novos cargos de desembargador, 90 assessores e mais de 800 cargos em comissão (CCs) para juízes, além de reajustes e vantagens funcionais em cascata. O detalhe que torna o cenário ainda mais revelador é que, conforme a Lei Complementar nº 15.720/2021, o Regime de Recuperação Fiscal é solidário, mas não obrigatório aos demais Poderes e órgãos autônomos como Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Tribunal de Contas e Defensoria Pública.
Enquanto o Corpo de Bombeiros Militar luta para preencher escalas com quatro militares por quartel, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou, na mesma semana, um projeto que aumenta de seis para oito os cargos de confiança externos (CCs) que cada deputado pode nomear de nove a 17 assessores disponíveis por gabinete. Ou seja, um único parlamentar agora conta com mais assessores do que muitos quartéis têm de bombeiros operacionais para atender diversas cidades. Ou seja, enquanto o Executivo se submete a severas restrições de despesa e congelamento de efetivos, os demais Poderes têm liberdade para ampliar estruturas e cargos, ainda que o Estado, como um todo, viva sob o mesmo discurso de austeridade.
Quando o Estado amplia efetivos para a custódia de apenados, mas não garante o mínimo para a proteção da sociedade em situações de incêndio, desastre ou emergência, cria-se um paradoxo moral e administrativo. O paradoxo se aprofunda quando se observa que, ao mesmo tempo em que se criam cargos administrativos de alto custo, a Defesa Civil estadual, função típica dos bombeiros segundo a Lei Orgânica Nacional (Lei 14.751/2023), segue subordinada à Casa Militar, e ocupada majoritariamente por integrantes da Brigada Militar. Ou seja: a área responsável pela prevenção e resposta a desastres, que exige formação técnica e científica, continua vinculada à estrutura policial e política do governo, distante de quem executa a missão no campo.
A valorização das carreiras de segurança pública é necessária, mas precisa ser coerente. Não é razoável que, sob o mesmo teto de austeridade fiscal, se ampliem gratificações e cargos administrativos enquanto se nega efetivo ao serviço essencial de salvamento e defesa civil. A pergunta que fica é simples: quanto vale a vida do cidadão comum diante do equilíbrio orçamentário e das escolhas políticas do Estado?
ABERGS
Unidos em um só corpo, Corpo de Bombeiros!
Imagem: Rodrigo Ziebell

