Foi com um gosto amargo que o Piratini recebeu a aprovação da Lei Kiss federal. Passadas duas semanas da aceitação final na Câmara, representantes do Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção Contra Incêndio (COESPPCI), criado para formatar a legislação do Rio Grande do Sul a partir da contribuição de diversas entidades, se reuniram com a Casa Civil gaúcha e manifestaram preocupações sobre diferenças entre as duas normativas. O resultado foi a consolidação de uma carta, remetida ao governo federal, na expectativa de que Michel Temer vete pontos da lei nacional. O prazo para decisão presidencial se encerra na quinta-feira.

Foram quatro anos de acirradas discussões, incluindo quatro votações na Assembleia – três para votar alterações e uma para derrubar veto do governo – motivadas pela tragédia da boate Kiss, até que os 59 artigos com regras de prevenção a incêndios fossem definidos no Estado. 

A legislação federal, considerada uma espécie de guarda-chuva, com menos da metade dos artigos – 23 no total –, se tornará soberana se receber sanção de Temer. Caso isso ocorra mantendo o texto da forma que passou pelo Congresso, o Estado se verá obrigado a modificar sua lei.

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Uma normativa não é mais dura do que a outra – cada uma tem seus pontos de alto rigor –, mas os parâmetros que as regem são diferentes, a começar pelo mais básico: o tipo de imóvel que deve ter alvará. A legislação federal prevê que são todos os locais de "reuniões de público" com capacidade simultânea de cem ou mais pessoas.

A gaúcha, todas as "edificações", com exceção de residências, mas, após mobilização de empresários, passou a permitir, conforme o tamanho e o risco de fogo do imóvel, a emissão de certificado online e de Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI) simplificado, sem necessidade de vistorias.

Também há diferença quanto às medidas de segurança a serem adotadas. Pela federal, itens como extintores, saídas de emergência e sinalização devem seguir o que determina a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). A estadual criou normas próprias.

– Avançamos no que diz a ABNT, que tem regras muito defasadas, e adaptamos para a nossa realidade. Se tivermos que voltar ao padrão nacional, vamos retroagir 20 anos – avalia o comandante do Corpo de Bombeiros do Estado e presidente do COESPPCI, coronel Adriano Krukoski Ferreira.

Além das questões técnicas, a Lei Kiss nacional cria sanções inéditas: enquadra em crime o dono ou responsável por estabelecimento que não tiver alvará em dia ou permitir superlotação, e prevê que tanto o prefeito quanto bombeiros poderão ser processados por improbidade administrativa caso não cumpram as responsabilidades de emissão e fiscalização de alvarás.

Para a coordenadora do centro de apoio de defesa da ordem urbanística do Ministério Público Estadual (MP), promotora Débora Menegat, a penalidade imposta ao prefeito, embora não conste na lei estadual, já pode ser determinada judicialmente caso comprovada a omissão do gestor com base na lei específica de improbidade administrativa. Na tragédia de Santa Maria, o então prefeito Cezar Schirmer – hoje secretário estadual da Segurança –, chegou a ser indiciado, mas o MP arquivou inquérito que apurava responsabilidade de agentes públicos por entender que não havia indícios.

A principal novidade, segundo Débora, é a punição aos militares. No Caso Kiss, apenas quatro bombeiros foram denunciados. Dois foram condenados por irregularidades na expedição de alvarás e outro por fraude processual – todos recorrem em liberdade. Nenhum deles foi punido por improbidade.

– A nova lei federal diz que se o bombeiro não analisar o processo no prazo máximo previsto na legislação estadual, incorre em improbidade. Esse é meu receio. A norma gaúcha não estabelece prazo, não porque não gostaríamos, mas porque hoje o Corpo de Bombeiros não tem pessoal nem estrutura para atender à demanda, o que dirá cumprir prazo ideal de três, quatro meses – aponta a promotora.

Conselho de Bombeiros alerta alta na demanda

Nacionalmente, as mudanças também são alvo de críticas. O conselho nacional dos Corpos de Bombeiros, o Ligabom, se reuniu em Brasília com lideranças do primeiro escalão da União no início da semana passada e entregou nota técnica semelhante ao que fez o Piratini, com base em recomendações do Conselho Estadual de Segurança, Prevenção e Proteção Contra Incêndio (COESPPCI).

A entidade critica o possível aumento da demanda dos bombeiros que, pelo previsto na Lei Kiss federal, terão de fazer vistorias anuais nos estabelecimentos com alvará, independentemente do grau de risco. Até agora, a corporação só faz inspeções in loco no Estado nos locais com perigo de incêndio, como boates e áreas com grande carga inflamável, no momento de emitir ou renovar o alvará – que pode ter prazo de até cinco anos.

Possibilidade de treinar equipes municipais

A proposta federal guarda brecha que poderia aliviar a carga de trabalho dos bombeiros. Permite que prefeituras façam convênio e criem equipes, treinadas pela corporação, para tocar todo o processo de concessão de alvará, o que atualmente é prerrogativa exclusiva do Corpo de Bombeiros.

Para o presidente do Sindicato de Hospedagem e Alimentação de Porto Alegre e Região (Sindha), Henry Chmelnitsky, mais do que a criminalização de donos de estabelecimentos, prevista na lei federal, a demora na liberação de alvarás é o principal entrave – em Porto Alegre, pode levar um ano.

– O problema não é a lei, é desburocratizar a questão, fazer acontecer – afirmou Chmelnitsky.

Autor do projeto gaúcho, Adão Villaverde (PT) comemorou a aprovação da lei federal, na expectativa de que "desfaça a flexibilização" aplicada na legislação do Estado, com as alterações aprovadas posteriormente. A deputada federal Elcione Barbalho (PMDB-PA), autora do texto nacional, afirma que a aprovação é um "marco regulatório" que padroniza as normatizações no país, já que muitos Estados não têm legislação de prevenção de incêndios.

Fonte: ZH