Há um trio nas areias do Litoral Norte que há cerca de 30 anos não vira as costas para o mar. De jeito nenhum. Se estão na praia, a trabalho ou em dia de folga, é em direção à água que eles mantêm o olhar sempre atento. Vivem prontos para largar o que estiverem fazendo ao primeiro sinal de que alguém se aventurou e foi além do que o mar permitia.
É nas guaritas 127, em Imbé, e 145 e 146, em Tramandaí, que trabalham os três salva-vidas mais experientes do verão gaúcho. Todos eles se criaram na beira da praia, filhos de pescadores ou parentes de outros salva-vidas. Na água, são como peixe: não têm medo, mas não perdem o respeito pelo mar. É por isso que, por alto, eles somam juntos mais de dois mil resgates. Muitos deles difíceis e gravados até hoje na memória. Mas nenhum sem final feliz.
Das 228 guaritas vermelhas que se alinham desde Torres até Tavares, o mais tarimbado é o sargento Paulo Barrin, natural de Tramandaí. Aos 51 anos, ele acumula 33 temporadas e mais de mil resgates — ele somava um por um até alguns anos atrás, mas se perdeu nas contas. Assim como os outros dois sargentos que ocupam o pódio dos mais experientes — Sérgio Müller, 47 anos, e Paulo Marques, 48, ambos com 28 verões e mais de 600 resgates cada um—, Barrin ingressou na carreira como salva-vidas civil, contratado pelo município. Foi pela vocação em seguir tirando gente com vida do mar que deixou o barco de pesca e ingressou na Brigada Militar.
Durante o ano, o veterano atua no policiamento nas ruas de Novo Hamburgo, no Vale do Sinos — um trabalho que faz com paixão, diz ele. Mas fica feliz mesmo é lá pelas tantas de dezembro, quando troca o coturno e a farda pelo apito, sunga, regata amarela, boné, óculos de sol e muito filtro solar. Neste verão, é na guarita 127, em Imbé, que ele se sente em casa. Morador de Osório, Barrin chega todos os dias à praia por volta das 8h30min. Ao lado de sua dupla, ele avista o mar, ergue a bandeira da cor apropriada, restaura o morro de areia sobre o qual pula em casos de emergência, faz outros dois menores para apoiar a boia e a corda utilizadas nos resgates, e fica atento aos veranistas. Por volta do meio-dia, chama uma comida por tele-entrega. Só deixa a guarita às 19h30min, quando encerra o expediente.
— Isso aqui é que nem atuar na seleção brasileira, tem que vestir a camisa amarela, a amarelinha, e valorizá-la — brinca.
Parece monótono. Mas é sempre diferente, ele garante. Principalmente em função do mar, que se deixa levar pelo vento e muda de figura a cada pouco. Quando vê, o buraco que estava ali foi parar mais adiante. O banco de areia desapareceu. A corrente de retorno que puxava os banhistas para o lado agora suga as pessoas mar adentro. O fulaninho finge que não ouve os apitos e não sai da área de risco. O outro quer mostrar que sabe nadar, mas o mergulho não engana (pelo menos não um salva-vidas criado no mar). E aí, de apito em apito, o dia passa — felizmente, nas últimas temporadas, sem preocupações maiores. Desde 20 de dezembro do último ano, Barrin participou de seis salvamentos, quase todos em fins de semana, quando muitos arriscam combinar o álcool com o mar.
Natural de Osório, Marques criou-se em Tramandaí, ajudando os irmãos nos barcos de pesca. Aprendeu cedo a nadar e a conhecer os riscos dos rios e do mar. Aos 19 anos, trabalhou em seu primeiro verão como salva-vidas civil. Um ano depois, entrou para a Brigada Militar como soldado. Não demorou para que fosse promovido a cabo por um ato de bravura: era inverno de 1990, ele passava por uma das margens do Rio Tramandaí quando avistou um menino passando por apuros na água. O garoto de 12 anos teve cãibra e saiu do rio praticamente morto nos braços de Marques. Por um pouco mais, não teria sobrevivido. Este talvez tenha sido o primeiro de uma centena de salvamentos feitos fora do horário de serviço. Outro deles, ocorrido em 1997, é considerado até hoje o episódio mais marcante na carreira do salva-vidas.
— Eu estava pescando em Tramandaí quando uma menina, de uns quatro anos, mergulhou na Boca da Barra, pelo lado de Imbé, um dos lugares mais perigosos, onde o mar briga com o rio. A morte ali é quase certa. Quando vi a cena, pulei na água também. Cheguei até a menina, ela tampava o nariz com a mão. Quando a peguei nos braços, ela soltou o nariz, respirou e falou: "Estou nadando, estou nadando". Comecei a nadar contra a força da água, e o desgaste foi tão grande que, quando chegamos na beira eu tinha a certeza de que, se precisasse nadar mais um metro, teríamos morrido. Foi a pior sensação que tive. Perder ela dos braços eu não ia, porque o salva-vidas dificilmente irá soltar alguém. Corre o risco de morrer junto, mas ele está ali para salvar — conta Marques, que, fora da guarita 145, atua no policiamento em Gravataí, na Região Metropolitana.
Para Barrin, o caso mais marcante ocorreu em Mariluz. A vítima desmaiou no mar, assim que o salva-vidas chegou para resgatá-la. A dificuldade para tirá-la da água foi tanta que o sargento se pôs a chorar quando chegou na areia. E a emoção não era por ter quase morrido.
— Chorei porque tive muito medo de perdê-la. Graças a Deus nunca perdi ninguém até hoje — conta Barrin.
Desde que passou a fazer parte da rotina dos salva-vidas, há cerca de seis anos, o apito é o maior aliado na prevenção dos afogamentos. No início, os veranistas não davam muita atenção, hoje sabem que cada silvo é um sinal de alerta. O problema é que nem todos obedecem, assim como não respeitam a sinalização de bandeiras que indicam os perigos do mar.
— Não deixamos as pessoas avançarem para estes lugares perigosos. Mas às vezes não adianta. Minha pior lembrança enquanto salva-vidas ocorreu em um local que estava sinalizado. Quando entramos no mar para retirar o banhista, a nossa boia, de material diferente do de hoje, se despedaçou. Tive que manter a pessoa em cima da água por cerca de 40 minutos, até chegar o reforço com outra boia. Estávamos muito afastados, a vítima tomou muita água e eu também — conta Sérgio Müller, bombeiro natural de Tramandaí, salva-vidas na guarita 146.
Müller, assim como os outros dois veteranos, afirma que dificilmente vê as vítimas voltarem até a guarita para agradecer pelo salvamento. Segundo ele, isso ocorre pelo estado de choque em que ficam ou até mesmo por vergonha — querem, o quanto antes, se esquecer do que passou. Os três dizem não se importarem com isso. Não estão ali pelo reconhecimento, mas pela vocação. O que lamentam, no entanto, é a atitude dos banhistas.
— O mar diminuiu a faixa de areia, ficou mais alto, com mais força, além de que oscila muito. Só que o comportamento das pessoas não muda. E aí quando fazemos o salvamento, não tem mais muito o que ser dito. Geralmente só pergunto se a vítima ouviu o apito. Queremos fazer com que ela se lembre de que, antes de se meter nesta situação, ela foi avisada — afirma Marques.
Logo mais, os veteranos encerram mais uma temporada e começam a se preparar para a próxima. Não estão muito longe da aposentadoria, mas garantem salvar vidas enquanto tiverem condições físicas para isso. A esta altura, já nem se dão ao trabalho de manter atualizados os números de salvamentos realizados. Há um motivo bem maior para voltarem para as areias do Litoral Norte, verão após verão.
— O mar, depois que leva, leva para matar. E a gente está aqui para ir contra a força da natureza, para resgatar as pessoas com vida. Voltaremos para casa mais uma vez com a sensação de orgulho, de que o nosso dever foi cumprido — conclui Barrin, sem tirar os olhos do mar.
Fonte: Bruna Scirea - de Capão da Canoa / Foto: Lauro Alves / Agencia RBS