Na ajuda para buscar vítimas em meio à lama após o rompimento da barragem em Brumadinho, Minas Gerais, a experiência catarinense nesse tipo de trabalho se mostrou útil. Revezaram-se na função equipes de resgate e sete homens com cães farejadores. Um ano depois do desastre que causou a morte de 270 pessoas, bombeiros catarinenses relembram os desafios e a aprendizagem na maior operação de buscas do país.

O rompimento aconteceu em 25 de janeiro de 2019 e, quatro dias depois, bombeiros de Santa Catarina viajaram para Brumadinho. Duplas de homem e cão, conhecidas como binômios, de diferentes regiões do estado catarinense participaram das buscas. Eles se revezavam: a cada oito dias, eram substituídos por outra dupla.

Os últimos binômios retornaram a Santa Catarina em 21 de março. De acordo com o Corpo de Bombeiros do estado, entre as buscas com cães e outras equipes da corporação, os 43 profissionais que atuaram em Brumadinho encontraram 17 corpos e mais de 100 fragmentos de vítimas. Também foram localizados animais e veículos.

 

Trabalho em lama

Foram necessárias apenas duas horas e meia de buscas até Hunter localizar a primeira vítima do rompimento da barragem. Era o primeiro dia de buscas da dupla em solo mineiro, conforme recorda o cabo Ronaldo Wagner Fumagalli, binômio de Hunter nas missões.

O olfato apurado do cão, que carrega no nome a habilidade de caça, foi responsável por levá-lo à maior tragédia ambiental do país. Os cinco anos e meio de experiência o tornaram capaz de identificar dezenas de odores diferentes exalados pelo corpo humano.

A dupla integrou a primeira equipe catarinense que trabalhou em Brumadinho, em janeiro de 2019. Voltaram a Santa Catarina após 11 dias de trabalho e, ainda em janeiro, retornaram a Minas Gerais após terem sido novamente chamados para a missão.

Fumagalli conta que a experiência de Hunter na procura por vítimas foi o que motivou a volta a Brumadinho.

“O trabalho de buscas de resto mortais por cães ainda está iniciando no Brasil e a maioria dos cães tem pouca experiência. Como nós já trabalhávamos há bastante tempo, fomos chamados de novo”, explicou o bombeiro.

 

Treinamento com deslizamentos

Foi uma tragédia catarinense que obrigou os bombeiros do estado a aprenderem mais técnicas para lidar com situações difíceis. As enchentes de 2008 causaram destruição no Vale do Itajaí, com mais de 3 mil deslizamentos de terra. "A demanda foi muito grande e nós passamos então a cobrar dos nossos cães qualidade técnica mais elevada", explica o responsável pela Coordenadoria de Busca, Resgate e Salvamento com Cães do Corpo de Bombeiros catarinense, tenente-coronel Walter Parizotto.

"O desastre daquele ano nos fez trabalhar com deslizamento, preparar o cão para buscar pessoas enterradas" diz Parizotto. Binômios catarinenses já tinham atuado em Mariana em 2015, cidade mineira onde também houve o rompimento de uma barragem. As experiências com esses dois desastes fizeram com que a ajuda catarinense fosse bem-vinda.

Tamanha habilidade requer capacitações específicas que, atualmente, poucos fazem no país. Hunter é treinado para reconhecer, por meio do olfato, todas as fases de decomposição pela qual passam a carne humana. No vídeo abaixo, o cão avisa, por meio de latidos, que encontrou uma vítima.

 

Desafios

Outro binômio que também esteve na primeira leva de socorristas de Santa Catarina em Brumadinho foi o do soldado Josclei Tracz e o cão Iron. O militar conta que esse trabalho de resgate foi o mais desafiador que ele já participou.

“Foi uma ocorrência diferente do que estamos acostumados. Fazia muito calor e precisamos adaptar o horário. Saía bem cedo para o clima estar mais ameno. Isso fora a lama em si. Dava um passo, estava firme. No segundo, já afundava, prejudicava a locomoção. Foi o mais difícil com cães, com certeza”, relata.

Iron, que estava habilitado para fazer resgates havia um ano quando foi enviado para o estado mineiro, ajudou a encontrar vítimas no meio do lamaçal provocado pela queda de barreira da mineradora. Após a localização, o cão era levado para descansar enquanto Tracz fazia o trabalho de desenterrar e encaminhar os restos mortais para um helicóptero.

“A gente sentia tristeza pelas mortes, mas precisava cumprir nosso dever e encontrar essas pessoas. Precisava dar uma satisfação para as famílias. Por mais triste que seja, quando essa família consegue ter certeza do que ocorreu, o tempo ajuda a cicatrizar a dor. Sentimos pelas pessoas que ainda vivem na dúvida”, diz o bombeiro, referindo-se aos parentes das vítimas que ainda estão desaparecidas.

 

Ferimento

Tracz e Iron estiveram em Brumadinho duas vezes. Na primeira, ficaram cerca de 10 dias. Depois, voltaram para Santa Catarina, onde permaneceram por aproximadamente uma semana. Após esse período, retornaram a Minas Gerais para dar continuidade aos trabalhos.

Porém, a segunda ida a Brumadinho acabou depois de menos de uma semana, antes do tempo previsto, devido a um acidente de trabalho sofrido por Iron: um espinho atravessou uma das patas dianteiras do cão. O alto risco de contaminação no ferimento por causa do ambiente onde eram feitas as buscas fez com que os veterinários de plantão decidissem manter o cão longe do trabalho.

“Eu percebi que ele estava com a pata inchada numa das duchas diárias que dava nele para tirar a lama. No hospital veterinário de campanha, fizeram ultrassom e viram. No dia seguinte, o Iron foi anestesiado para retirada do espinho, e precisou levar alguns pontos. A chance de contaminar a parte ferida era muito alta. Eu sou veterinário também e sabia disso, que ele precisava parar o resgate”, disse Tracz.

 

Preparação veterinária

Além de Tracz, a soldado Andreza Moraes é a outra profissional do Corpo de Bombeiros de Santa Catarina formada em medicina veterinária. Ela conta que, antes de os cães irem a Brumadinho, foi feita uma cartilha para ajudar a prevenir problemas de saúde nos animais.

Entre as orientações estavam quais procedimentos deveriam adotar antes e depois da missão, exercícios de relaxamento para os animais, produtos que deveriam ser utilizados para manter a saúde e higiene do animal, relata a veterinária.

Na época em que os cães foram a Mariana, acabamos não fazendo cartilha porque não se sabia como ia ser lá. Mariana é tipo parecido de situação, então [para Brumadinho] a equipe já tinha conhecimento do que ocorre na lama", diz a soldado.

"Levamos em consideração as recomendações em relação ao clima de Minas Gerais, quais eram os desafios que os cães iam passar, ectoparasitas, doenças da região, cuidados em relação à higiene, em relação à parte da lama, como prevenir doenças, intoxicações, cuidados com bem-estar e, depois de cada ocorrência, como fazer para sentir menos dor muscular", descreve Moraes.

Em Brumadinho, foram disponibilizados hospitais de campanha tanto para os bombeiros como para os cães.

 

Trabalho árduo

O soldado Luciano Rangel guarda momentos com o cão Barney de um dos pontos mais críticos e árduos de sua trajetória. Eles saíram de Lages, na Serra catarinense, onde atuaram no 5º Batalhão de Bombeiros Militar de Santa Catarina (CBMSC), e trabalharam nas zonas consideras “quentíssimas”, que ficavam mais próximas do rompimento da barragem de Brumadinho, em missões de busca e resgate.

“Eu e o Fumagalli ficamos mais tempo dedicados em operação por lá”, lembra. Ambos desempenharam técnicas de certificação internacional para encontrar vítimas em meio à lama de rejeitos.
 

Entre as memórias da tragédia, Rangel guarda com carinho uma carta à mão de um garotinho. A mensagem dedicada ao “Super-Herói” termina com um coração.

“Olá Super-Herói, fique sabendo que Jesus te ama. Ele nunca vai te deixar, nunca vai deixar de te amar. Muitas pessoas estarão triste por causa das mortes. Jesus te abençoe. Com todo meu coração, Daniel”, diz a carta.

O pequeno gesto de gratidão foi deixado no primeiro posto que ficou abrigada a equipe catarinense. “Pra mim isso foi uma das coisas mais importantes”, afirma Rangel.

 

Hora de rever e ampliar aprendizados

“Nós temos uma máxima dentro do Corpo de Bombeiros que não há glória em incêndio que poderia ser evitado. Então parafraseando pro desastre natural, não há glória em atuar em um desastre assim. Eu fico orgulhoso de poder honrar a minha farda, meu estado, e trazer respostas para tantas pessoas, pois a única confiança deles era em nós”, explica.

Para Rangel, a experiência foi de aprendizado intenso, mas dois pontos foram importantes. Um deles envolve a valorização do próximo.

“Sou uma pessoa bem introspectiva e quando lembro daquele momento reflito sobre a banalização da vida. Às vezes por um motivo fútil saímos de casa brigados nesse dia e até hoje talvez algumas pessoas não puderam dar o último abraço nessa pessoa. Temos que valorizar as coisas que têm valor, e não preço”, diz.

O outro destaque traz a importância de ampliar as certificações para a formação de mais binômios. “O aprimoramento, capacitação e especialização das equipes em desastres de origem natural, devem ser constantes. As condições, alterações e os fenômenos climáticos mostram a necessidade de equipes especializadas, como a força-tarefa do CBMSC”, explica.

Atualmente Rangel carrega a figura de Barney tatuada no corpo. O cão morreu durante uma ação para encontrar um desaparecido.

 
Acompanhamento médico

Os bombeiros e os cães que participaram das buscas precisam fazer acompanhamento médico regular por causa da contaminação por metais pesados. Ainda não são claras as consequências dessas substâncias tanto no corpo de humanos quanto de animais.

Todos os meses, os binômios são submetidos a exames para verificar os possíveis impactos. “Prazo de quando esse acompanhamento vai acabar não tem, porque nunca tiveram que lidar com isso. No início, até apareceram alterações, mas normalizou com o tempo. Hoje em dia não temos nenhum problema”, conta Fumagalli.

Binômios

Confira AQUI as fotos de todos os binômios de Santa Catarina que atuaram em Brumadinho.